Arquivo: Julho 2008

fragmentos do diário XVII – breves de 2008

Há muito que queria escrever. Parar seria obrigar-me a pensar. A fuga era mais fácil. 6 Fevereiro

Esta solidão. Cola-se às paredes internas do corpo. Entranha-se.
Esta tristeza. 6 Fevereiro

Tenho cada vez mais dificuldade em expressar sentimentos. Sou incapaz de admitir que às vezes as saudades são aterradoras. 6 Fevereiro

Hei-de colar uma fotografia sua neste diário. Como Anais fez com June. Para que ninguém duvide. 21 Março

É através da solidão que chego a mim. Só a solidão me devolve a liberdade. 21 Março

Os anos deixam marcas. Acredito pouco. Deslumbro-me pouco. Mantém-se apenas este desejo, quase como uma necessidade vital, de amar no limite, de amarem-me no limite. 22 Março

Sinto falta. Não consigo nomear. Apenas sinto falta. 23 Março

- Quero-te.
- E se eu te quiser também? 27 Março

Sou uma casa vazia estendida sobre os anos. Em breve não haverá espaços em branco e sufoco dentro das minhas memórias. 28 Março

O passado agride-me. Tudo o que desaparece, tudo o que muda. Perco-me por perder. Exponho-me à tristeza. Podia facilmente viciar-me nesta dor.
Sou imortal dentro da tristeza. Vivo desde sempre. Ainda que pressinta a morte, ela não virá. Serei a obrigada a levar a tristeza ao limite, a viver com estes fantasmas, como o peso do mundo sobre as costas de Atlas. 28 Março

É tudo uma mentira. Um engano. 12 Abril

A sua beleza, a sua loucura, a sua maldade. Ela levar-me-ia à destruição.
Por isso me atrai. 12 Abril

A vida de todos os dias esgota-me. 3 Junho

Para lá do cansaço, da solidão, da tristeza, permaneço. Vivo numa redoma de vidro. Mas ninguém vê. 3 Junho

Dentro de mim os dias correm devagar. Tudo acontece no mundo exterior, pelo qual raramente sou tocada. 4 Junho

Sinto-me fora do caminho. Há um abandono dos sentidos. Na verdade, quase tudo me é indiferente. 4 Junho

O amor alastra-se em nós como uma doença. É assim ainda que ela não o veja. Precipito-me para a loucura. 13 Junho

Regresso à tristeza, à “voracidade dos tigres nocturnos”. Podia ficar deitada durante horas a ouvir a minha própria respiração. Até que um qualquer amor, um engano, me viesse salvar. 18 Junho

Em que parte do caminho me perdi da vida? 18 Junho

Acabo mais um diário. O segundo nos últimos oito anos. Já não acredito em recomeços. A vida é uma linha recta sem interrupções. Arrasto-me nos dias. Existo ainda.
Envelheço mais depressa na ausência da escrita. 18 Junho

Pressinto Janeiro no começo deste diário. A repetição dos dias. A
contagem lenta, sempre igual, do tempo. A rotina das palavras, dos
gestos. Tudo se prolonga. Não há nada de novo. 24 Junho

Disse-me “apetece-me beijar-te”. E beijou. Não sentia qualquer desejo mas deixei que o fizesse. Tanto me fazia. 25 Junho

“O meu diário em troca do teu.” E não percebe que ao dizer-me isto imediatamente me perde. 26 Junho

Alastra-se a solidão, fere-me, deixo-me ferir. Aceito a ausência do mundo. Há muito que me retirei. 25 Julho

Talvez esta solidão me devolva a escrita. Talvez não devolva nada, talvez roube.
Envolvo-me numa tristeza que não pressenti. Falho-me. 7 Agosto

No jardim de Serralves. Um silêncio quase absoluto.
Nenhum regresso é possível. O passado alastra-se e fere-me e as noites são demasiado dolorosas.
Faço um esforço para conhecer pessoas. Mas que importa? Duas horas de uma solidão um pouco menos atroz é o que consigo. 9 Agosto

Acabei há minutos de ler um livro de Duras. Há muito que não acabava um livro. Passam-se meses sem pegar num livro. Vivo dentro dos livros que já li. São eles que me salvam. 9 Agosto

fragmentos do diário XVI – breves de 2007

Quando vi a ambulância junto a casa, corri. Como se tudo dependesse de quão rápido conseguia correr.
170 comprimidos. Fizemos as contas. Sem acreditar em Deus senti, pela primeira vez, que Deus me abandonara. 6 Março

Tenho um cansaço de 50 anos. 6 Março

Este sono que se alastra por dentro de mim. 9 Março

Não sei se consigo ainda viver sozinha. É aterrador. 9 Março

Quero que ela seja o mais feliz possível. Não há raiva, nem arrependimentos, apenas tristeza.
Entre o nada e a dor, escolho a dor. 10 Março

Com os anos, foi desaparecendo da memória a magia que existe quando o desejo é quase insuportável e acontece o beijo. 1 Junho

Tornei-me mais feminina no amor. Permito que as emoções vivam à flor da pele. Sou mais vulnerável. 1 Junho

Há dias, como hoje, em que desejo voltar atrás no tempo. Um tempo sem tanto peso para carregar. Ter tempo para a tristeza. 14 Junho

Há ainda momentos, como este, em que me sinto uma menina a brincar aos crescidos. 15 Junho

Perco facilmente o controlo das coisas e ela é a única capaz de me trazer de volta. 16 Junho

Quero sentir. Pouco importa se dura um dia, uma noite ou um mês, nem sequer se ela está apaixonada. Quero envolver-me para sentir. Apenas. 17 Junho

Hoje sinto demais. 22 Junho

A paixão esgota-me. Não sei já como, em tempos, pude viver neste estado permanentemente. 23 Junho

Leio nas entrelinhas aquilo que na verdade não está lá. 23 Junho

Já não sabia quão livre se podia ser. Durante horas ouvi música alta, misturei-me por entre corpos, senti as luzes, o álcool. Senti que o tempo tinha passado. Que a vida me tinha fugido. 24 Junho

Encontrei “R”. Ela olha-me. Ela diz-me com o olhar que nunca ninguém a amou como eu. Não se volta a amar pela primeira vez. Foi isso que lhe dei. Um primeiro amor.
Ela olha-me. E fala. E eu deixo de a ouvir. Sinto um impulso incontrolável de a abraçar. Ficámos assim muito tempo. 24 Junho

Não tenho jeito para romantismos. Nem paciência. Deixei-os em “R”. Sei-o. 30 Junho

Não procuro ninguém e espero que ninguém me procure. 12 Julho

Há momentos em que sinto que não a vou deixar nunca. Ainda que não exista desejo. Ainda que me deite com outras mulheres. 14 Julho

Não consigo ficar nem partir. 12 Agosto

Quando acaba o desejo acaba o amor? 12 Agosto

Não sinto falta de ninguém. Sinto falta da sensualidade. 26 Agosto

Relembrei-me de como me apaixonava facilmente. De como a cumplicidade de um olhar me prende numa redoma da qual não me quero libertar. 31 Agosto

É indescritível a suavidade de uma mulher. 31 Agosto

Volta a poesia. Seis poemas em dois dias. 31 Agosto

Crescemos dentro deste amor e esta despedida leva consigo uma parte da nossa identidade. 10 Setembro

Não consigo fazer outro caminho que não este e ainda assim sinto uma tristeza inexplicável. 14 Setembro

Sinto-me cansada e sem forças. Os movimentos do braço ao escrever são dolorosos. 25 Setembro

“S” continua em mim enquanto me sinto atraída por “D” e durmo com “F”. É preciso clareza. Dissecar os sentimentos. 30 Setembro

Envolvo-me para que se envolvam. 1 Outubro

De repente sinto a minha vida de volta, viro-me para mim e é uma descoberta que me consome. 7 Outubro

Ainda à deriva. Se dou mais do que um passo de cada vez a respiração torna-se pesada. 11 Outubro

Não sei se estou mais ou menos feliz. Deslizo à superfície das coisas, sem que nada me toque realmente. 12 Outubro

Voltam os pesadelos. Noite após noite. 18 Outubro

fragmentos do diário XV – breves de 2006

Escrevo pela primeira vez este ano. 3 Março

O medo que esta instabilidade faça parte de mim, de quem eu sou. 3 Março

A monogamia não é natural ao homem. Mas o sentimento de posse é. 4 Março

Ao mesmo tempo que me apetece que algo surja e vire a minha vida do avesso, esta paz sabe-me bem. 30 Maio

As férias passaram. Passou quase o Verão inteiro. Este diário ficou junto à cama, fechado, todos estes meses. 28 Setembro

Passa das seis. Não durmo. Desisto. Levanto-me e vou procurar calmantes. Agora espero que façam efeito. 5 Outubro

“O tempo cobre-se de musgo. (…) Sublima-se a pouco e pouco, dilui-se no sangue inquieto – é o início do esquecimento; esse imenso limbo semi-obscuro onde flutuarão rostos e gestos, corpos e palavras – e nada terá sentido. Mas reconhecerei as ruínas daquilo que amei, daquilo que nomeei para entender o mundo.”

Al Berto | Canto do Amigo Morto

capítulo da devolução

devolucao.jpg

acalma-se o tempo para lá
da tua voz.

o amor, dirás, permance
escrito no branco desta saia.

a sombra inclina-se sobre
a água e esqueço-me de te ouvir.

desço a rua, há uma cidade
crescente nos meus olhos.

e sob uma janela enlaço os dedos
nos cabelos de outras mulheres.

Pensava eu que a felicidade deveria estar escondida naqueles momentos de perturbação em que me descobria no teu olhar. Enganei-me, passei a vida a enganar-me.
É tarde. Apago-me vagarosamente.
Deus talvez esteja no fundo do mar, na claridade das águas.
Dentro de mim sinto a melancolia da areia lavada pelo seu movimento invisível, eterno.

Al Berto