e eu caio, sem rede, olhar dela adentro.
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O tempo. A mãe que era uma mulher jovem, o riso das crianças, a mesa cheia no dia de aniversário. O tempo arrasta-nos como as ondas levam o que está à beira mar. Nada que é levado volta a aparecer.
E como deixar de estar sentado na areia, a olhar o mar, à espera que ele nos devolva aquilo que tirou?
devia pertencer àqueles que amam calmamente, para quem a loucura no amor é um jogo para o qual não têm paciência. mas estes amores – estes pelos quais poderíamos morrer – são um inferno de sensações que me devolvem à vida. são estes amores que me empurram para a escrita.
fragmentos de 2011
estava ali, frente à tua casa, a olhar para a varanda onde aparecias quando tocava à campainha. eu estava ali, como se te esperasse, como se pudesses voltar.
é perversa a ausência da escrita.
quando tudo em mim está calmo, não escrevo. mas não escrever é como respirar mal.
se não escrevo, sinto que vivo à superfície das coisas. quando a dor é intensa, escrevo ininterruptamente, estou no centro de mim.
daqui se depreende que preciso da dor para me sentir inteira.
haverá alguma vez equilíbrio em mim?
é como se o verão tivesse acabado de repente. o meu corpo acompanha o movimento das estações e as sombras da cidade instalam-se em mim.
de repente fiquei muito triste, tão vazia como estavam as ruas esta tarde. sobre o tejo caía um nevoeiro tão denso que dir-se-ia que o rio não existia.
aos nove anos já conhecia a morte. não havia céu nem lugar melhor. com a morte ia-se para debaixo da terra, ficava-se sozinho para sempre e chovia-nos em cima enquanto o corpo apodrecia. sabia que ninguém voltava da morte. que tinha de guardar na memória tudo o que conseguisse porque o tempo apaga os rostos e as vozes. sabia do inferno da solidão, que a loucura ameaça o olhar, as intermináveis horas de espera por quem jamais regressaria.a idade para ser criança acabou cedo. os campos de trigo onde outrora brincava às escondidas eram agora um refúgio para a dor. e os campos de trigo já não existiam senão na minha cabeça.
sabia que janeiro vinha inevitavelmente depois de dezembro, que as marés enchem sempre depois de vazar.
aos dez anos vi tanques e homens armados a invadir a minha cidade. soube que se fugirmos de um lugar levamos o lugar dentro de nós e que o silêncio das armas pode ainda provocar explosões por dentro do corpo. chegaram as noites carregadas de pesadelos, dormir em estado de alerta ou não dormir de todo. o baloiço enferrujou-se soltando-se da árvore quando as crianças desapareceram e já não havia sementes de girassol para encher os bolsos das batas pretas.
há espaços de dor que não conseguimos atravessar porque é na verdade a dor que nos carrega para a frente. mais do que qualquer outra coisa, é a dor que nos molda a identidade. o que nos aproxima mais de nós próprios senão o sofrimento?
todos os desastres que acontecem, acontecem para sempre.
é difícil acreditar que em algum ponto do mundo hoje faça sol. em lisboa chove, chove, chove.
fragmentos do diário XXIII – breves de 2014
doente. dores no corpo, febre.
soube que se vai embora. a ideia de nunca mais a ver faz-me estremecer. mas melhor assim. a paz só existe onde ela não está. 17 Janeiro
como pode ir sem me dizer nada? como pode ir sem ser comigo? não. onde quer que vá, ainda vai comigo. onde quer que vá, ainda vai por mim. 18 Janeiro
que esta viagem seja o teu velório onde me despeço para nunca mais. afinal, a única forma de te amar sempre foi nas despedidas. 19 Janeiro
e sempre que penso que estou livre de ti, não estou ainda livre de ti. 20 Janeiro
a raiva volta a preencher tudo, tira-me o ar. a raiva para onde quer que olhe, a raiva que só se pode sentir quando se amou no limite da loucura. 4 Fevereiro
escreveu-me ontem.
tinha pensado muito nesse momento em que receberia uma mensagem. teria forças para não responder? não tive. respondi em segundos.
é enlouquecedor o discurso dela. faz-me duvidar da minha sanidade. 5 Fevereiro
volta a escrever-me. lutar contra a vontade.
estes momentos febris, delirantes, de um amor que atravessa tudo, no limite da loucura, um amor que me ultrapassa e que é subitamente a maior verdade da minha vida.
depois há o racionalizar tudo isto. pensar na violência, no vício da espiral, questionar o amor porque o amor não é suposto ser isto e fazer tão mal.
depois o amor é suposto ser exactamente isto. porque se não doí não é amor, porque se não é no limite não é amor.
e, que estou eu a dizer? seria um inferno toda a vida nisto.
e toda a vida sem ela que inferno será? 18 Fevereiro
e depois há o dia seguinte. acreditar que não há amor nenhum, que o que existe é este estar só, em que a ideia de vê-la é-me indiferente e anseio conhecer pessoas novas. 19 Fevereiro
toda eu sou um domingo que se arrasta.
vejo-a a chegar, corro para ela. como uma cena de um filme repito-a vezes sem conta na minha cabeça. 9 Março
e assim se passam seis meses sem ela. 1 Abril
ouvir a sirene da ambulância. saber que vêm por mim. sentir que a vida pode acabar naquele instante. não sentir medo, sentir espanto. 12 Abril
não se podia falar daquele amor sem falar da morte. 4 Maio
vivo o dia a dia à superfície desta dor. não aguentaria aceitar a devastação da vida sem ela. faço por não pensar e deixo que as horas passem. depois, há momentos como este. acordo, abro os olhos, e não há fuga possível à dor. ela atravessa tudo, está em todo o lado e demoro muito tempo a regressar. 6 Maio
e vi o amor espelhado nos seus olhos.
olhámo-nos apenas, não falámos. os olhos encheram-se de lágrimas. 8 Maio
esta necessidade de ter alguém molda-nos os dias, tira-nos o prazer das coisas. é preciso libertarmo-nos dos outros, desta ideia que para estarmos felizes precisamos de uma relação amorosa.
devia voltar à escrita e à leitura. aproveitar a tristeza, diria A.
as saudades dele. as saudades dele. repeti-lo enche-me de raiva. o nunca mais da tua morte que é um para sempre da minha dor.
e a dor atravessa-se no pescoço e faz-nos respirar mal. 19 Maio
chove. irá chover toda a semana.
o tempo escuro enfia-se sempre na pele. esta merda desta tristeza que não me larga. 20 Maio
os dias vazios. lentíssimos. e esta chuva que não pára.
estou de costas viradas para a vida. ou é a vida que está de costas voltadas para mim? 21 Maio
sete meses sem ninguém. aparece alguém e percebo a dimensão do horror que ela me fez. o pânico que me causa a intimidade. a certeza que me vão magoar. a tristeza que me causa saber-me tão frágil, que perante a ternura estou sem defesas, que todos os toques me enchem de medo, como a um animal há muito abandonado. 7 Julho
a minha fragilidade é tão grande que acordo com vómitos, o corpo pesadíssimo, os olhos não abrem.
em que me transformei depois deste amor? como foi possível quebrarem-me desta maneira? nada, nada ficou intacto. i’m a wasteland now. 14 Julho
e assim chega a notícia do teu regresso.
não posso continuar a dar-me a este amor.
este amor, este amor. 11 Agosto
sexo com pessoas por quem não me sinto atraída, sexo gratuito, não pensar, esvaziar-me, deixar que me fodam durante horas até à exaustão do corpo. 13 Agosto
dois anos sem ti, rogério. a não importância das datas quando a dor ainda é diária. a importância da passagem do tempo. o pó na fotografia. 28 Agosto
o telefonema dela de manhã. quer ver-me. digo-lhe que não. desligo e quase que faltam as forças nas pernas. 4 Setembro
este amor como um mar negro em que a tempestade levanta ondas tão grandes que me cobrem e não tenho fuga. mar mar mar, luminoso afogado.
este amor como só este amor pode ser. negro negro, bright, negro. esta saudade. isto, isto, isto. 18 Outubro
deixará Penélope de tecer a sua teia? 1 Novembro
dir-se-ia que este ano foi um longo inverno. 5 Novembro
ela chega a Lisboa dentro de algumas horas. 15 Dezembro
em uma hora estará aqui. estou tão nervosa que sinto arrepios pelo corpo, os maxilares tremem, os olhos estão tão pesados.
um ano, dois meses e dezanove dias depois.
quatrocentos e quarenta e cinco dias depois.
sinto que vou abrir a porta e perder os sentidos. falhar-me-ão as forças. 17 Dezembro
não consigo escrever. em nenhuma palavra cabe este amor. 31 Dezembro
pouco me interessa a metáfora. vazia, cheia de pretensiosismo. detesto certezas absolutas. gosto muito mais do que é simples, sem versos complicados, sem palavras que requeiram o dicionário. gosto da nudez. a nudez das palavras, a nudez de um corpo que subitamente se encontra sem palavras, a nudez exposta, a nudez nua, nua, nua. não gosto de artifícios, de palavras que escondem palavras. gosto da exposição total, da palavra que me diz, de uma linguagem própria, despida, da uma nudez crua, como uma dádiva.