Arquivo: 2006

talento

estende-se ainda lisboa
no espaço tocável dos meus olhos.

posso esperar por ti junto ao alfarrabista
ou passear contigo ao entardecer.

posso deixar que este cenário se reconstrua
ou desenhar um novo mapa nas tuas mãos.

sei que o amor é um talento que não tenho.

fevereiro, 2004

lido mal com a saudade

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espero por ti.

“porque as palavras não te substituem e estão cheias de pústulas no coração das sílabas.”

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toda a vida fazemos as malas. para partir ou para ver partir.

nas últimas semanas, amigos atravessaram oceanos. outros preparam-se para o fazer.

mas foi sempre assim.

saudades de um amigo, de um amante, de uma cidade, um cheiro, uma mulher.

fui para tirana aos 6 anos. portugal aos 8. novamente tirana, depois lisboa.

a minha melhor amiga muda de país.

a minha nova melhor amiga muda de país.

o meu primeiro amor muda de país.

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agora fico.

(e espero por mim)

hei-de inventar uma nova cidade

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Viagem a Amsterdão – 1Nov06

Catedral

deito-me sobre o corpo de uma mulher
invento uma catedral no meio do deserto
enterro-te em areias brancas
escavo para encontrar a miragem do sexo

anoitece, aqueço as tuas mãos na minha boca
deslizo num sono de água
conto-te histórias em línguas desconhecidas

quero que ventos se levantem do norte e te façam voar,
quero que um pássaro azul se ocupe dos teus olhos.

Mortes Encenadas

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Tenho sete anos. Levanto-me e vou até à cozinha. Não posso fazer barulho porque estão todos a dormir. Abro a gaveta. Escolho a maior faca que encontro. Já vi isto acontecer num filme.

Ontem festejei o meu décimo aniversário. Ofereceram-me uma boneca igual a um bebé. Amarrei-lhe uma corda ao pescoço e fechei-lhe os olhos. Agora estou muito feliz.

Escrevo o nome de dezenas de medicamentos numa folha. Calculo o tempo aproximado que levarão a fazer efeito. Coloco os frascos por ordem e engulo os comprimidos, assim, primeiro um de cada vez, depois muitos, sempre mais, até quase me engasgar.

Tenho vinte e cinco anos. Anunciam a morte da escritora. A cabeça dentro do forno. Saio do meu quarto. Pego em fósforos.

Vou ao cinema o mais que posso. As imagens ajudam-me. Fico fascinada com a facilidade com que o fazem. Que raiva.

Tenho trinta e dois anos. Passo horas à secretária a imaginar como o farei. O corpo estremece-me de prazer. Só o excesso me convém.

Visto o meu melhor vestido. Saio para a rua. Estou parada no semáforo. Eles passam tão depressa. Vejo um vermelho. Condiz exactamente comigo. Dou dois passos em frente. Tenho quarenta anos.

1996

(como é que passaram 10 anos?)

As ruas são ruas para mim.

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(foto de Jorge Tutor)

Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no aprodrecimento há fermentação.

Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me destrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.

Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido – o som súbito do electrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade vida.

Há muito tempo que não sou eu.

Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego

É exactamente isto.

Releio passagens do Livro do Desassossego e demoro-me por páginas que, aos 18 anos, não poderia compreender.

Nessa altura, todas as palavras eram minhas. Não conhecia ainda a falta da poesia, a claustrofobia que me causa, este existir fora de mim.

Se queres escrever, por que não queres escrever?