quanto pode custar atravessar um dia?
Arquivo: 2015
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhadas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a vida possível.
Clarice Lispector | Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.
marguerite yourcenar
and the windows opened at night,
a ceiling dripped the sweat
of a tin god
and I sat eating a watermelon,
all false red,
water like slow running of rusty
tears,
and I spit out the seeds
and swallowed seeds,
and I kept thinking
I am a fool
I am a fool
to eat this watermelon,
but I kept eating
anyhow.
Bukowski
Não conheço um relâmpago que não nasça nos teus olhos.
Luís Falcão
poderei eu alguma vez naufragar noutro sítio?
rené char
é como se o verão tivesse acabado de repente. o meu corpo acompanha o movimento das estações e as sombras da cidade instalam-se em mim.
de repente fiquei muito triste, tão vazia como estavam as ruas esta tarde. sobre o tejo caía um nevoeiro tão denso que dir-se-ia que o rio não existia.
3 anos
Que te acontece que não mais fizeste anos
embora a mesa posta continue à tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez florido?
Ruy Belo
Milfontes, 2015
Também há lugares que nos beijam como se tivessem boca.
aos nove anos já conhecia a morte. não havia céu nem lugar melhor. com a morte ia-se para debaixo da terra, ficava-se sozinho para sempre e chovia-nos em cima enquanto o corpo apodrecia. sabia que ninguém voltava da morte. que tinha de guardar na memória tudo o que conseguisse porque o tempo apaga os rostos e as vozes. sabia do inferno da solidão, que a loucura ameaça o olhar, as intermináveis horas de espera por quem jamais regressaria.a idade para ser criança acabou cedo. os campos de trigo onde outrora brincava às escondidas eram agora um refúgio para a dor. e os campos de trigo já não existiam senão na minha cabeça.
sabia que janeiro vinha inevitavelmente depois de dezembro, que as marés enchem sempre depois de vazar.
aos dez anos vi tanques e homens armados a invadir a minha cidade. soube que se fugirmos de um lugar levamos o lugar dentro de nós e que o silêncio das armas pode ainda provocar explosões por dentro do corpo. chegaram as noites carregadas de pesadelos, dormir em estado de alerta ou não dormir de todo. o baloiço enferrujou-se soltando-se da árvore quando as crianças desapareceram e já não havia sementes de girassol para encher os bolsos das batas pretas.
há espaços de dor que não conseguimos atravessar porque é na verdade a dor que nos carrega para a frente. mais do que qualquer outra coisa, é a dor que nos molda a identidade. o que nos aproxima mais de nós próprios senão o sofrimento?
todos os desastres que acontecem, acontecem para sempre.