Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da acção chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.
Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego
olhou-o dormir
escorregou por entre-lençóis-quentes, virou-o
a respiração coalhava pelas costas, ele finge dormir
solta um ligeiríssimo e desordenado resfolegar, ao sentir o sexo retirar-se
amanhã nem sequer falaremos disto
dormimos
outros dias em que a solidão é mais cruel olha-o só
sentado aqui no meio do quarto
frente aos textos emendados, remediados, remendados
ferido, ele masturba-se
depois acorda-o, conta uma história qualquer, beija-o
sorri-lhe com os lábios a tremerem de abelhas
ele continua a dormir, indiferente ao mel
vagueio pela casa
rente aos ângulos estreitos dos corredores, sem saber por onde fugir-me
(Al Berto)
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
(Álvaro de Campos)