Arquivo: Outubro 2007

carta de milfontes

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Foi em 1978, no Verão, que te conheci. Nesse ano, num dos poemas de «doze moradas de silêncio» citei Rilke: «Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém — é a isto que é preciso chegar.»
Depois, a paisagem onde nos encontrámos desapareceu, a pouco e pouco, num desfocado adeus. Eu escrevia, fechado num quarto de pensão, e tu retiravas-te do meu quotidiano. Morrias longe de mim.
O corpo que hoje regressa a Milfontes já não é o corpo esplêndido que conheceste. Se há coisas na vida que contam com o tempo, são a amizade e a velhice. (O tempo fez-me perder a primeira, enquanto acentuava a segunda.)
O olhar embaciou-se para o que me rodeia. Hoje, sem ti, já não consigo pressentir a sombra magnífica da noite sobre o rio. Nada se acende em mim ao escrever-te esta carta.
Só a foz do rio parece guardar a memória duma fotografia há muito rasgada. O vento, esse, persegue a melancolia dos passos pelas dunas.
É possível que os verões ainda sejam o que eram… com os corpos estendidos ao sol, e a oferenda de um sorriso malicioso a confundir-se com o marulhar das águas.
Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las. E eu já não consigo nomear nada. Não me lembro sequer de um nome que resuma o movimento desastroso dos dias.
O teu rosto deixou de se acender na ilusão de te possuir mais uma noite.
Nada evoca esse tempo de frémitos de asas sobre a pele. Nenhum rumor do rio sobe até mim. Nenhuma ferida ficou por sarar.
Deixei que os ventos e as chuvas apagassem o desejo no rastro dos répteis incandescentes. Sinto-me como a haste quebrada da urze ao abandono nas areias varridas pelo oceano.
Contemplo as dunas, o casario contra a noite que se fecha, as luzes, o rio, as sombras das pessoas, o mar como uma lâmina sob a lua — e a ausência alastra em mim, cortante.
Sento-me onde, dantes, me sentava contigo, perto do farol. O que me rodeia move-se no interior surdo das suas próprias sombras. É um movimento invisível através de territórios que o olhar mal assinala. Concentro a minha atenção nesses lugares que a luz não pode alcançar. Lugares escuros onde se escondem receios antigos e desilusões.
Mantenho-me imóvel, tacteio o teu rosto diluído na salina claridade do entardecer.
Adormeço ou começo a subir o rio para fugir à imensa noite do mar.

Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim.
Vou prosseguir viagem assim que o dia despontar e o som do teu nome, gota a gota, se insinue junto ao coração.

Al Berto