Arquivo: Abril 2008

faz frio e o tempo enevoado deprime-me. a noite desgasta-me.
quem me dera conseguir não pensar em nada, deambular pela vida sem desejar, sem projectar fosse o que fosse, nem querer possuir mais que a humilde condição de continuar vivo.
talvez sentar-me junto ao mar e olhar as águas incendiadas. milhares de aves sobrevoando o cais. o frio entra pela janela, acorda-me. não sei o que hei-de fazer com estas visões.

não escrevo a ninguém, deixei de dar notícias. ninguém precisa de saber onde me encontro, se cheguei bem, se vou partir, se mudei de rosto ou de máscara.
um pássaro, dois homens puxando redes.
até quando poderei suportar a minha própria ausência?
e a vertigem?
o mar é um jardim que me afasta, de momento, de qualquer morte. continuar ausente é com certeza a melhor maneira de estar vivo, atento aos estremecimentos do mundo.
sentado no fundo dum espelho tomo a realidade por reflexo, escuto as estrelas, sou espectador das marés, do vento, da chuva, não tenho intenção de inventar um novo rosto para o corpo que perdi.

Al Berto

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Persona | Bergman

sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se
sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Fernando Pessoa

bitter moon

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Have you ever felt real, overpowering passion?
Have you ever truly idolized a woman?

Nothing can be obscene in such a love.

Everything that occurs between you…becomes a sacrament, don’t you see?

Bitter Moon | Polanski

Ela diz que escreve.
Mas não escreve.
Diz que escrita é inevitável.
Que só deixaria de escrever se morresse.
Talvez esteja morta.

in A Cor Púrpura

Vou deixar-te levar até à fecundidade da destruição. Por isso me atribuo um corpo, um rosto e uma voz. Eu sou como tu me és. Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e as tuas penas. Descobrirás o amor separado das paixões e eu descobrirei as paixões privadas de amor. Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Eu passarei a assumi-las.

Anaïs Nin
A Casa do Incesto

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não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
eu não: quero é uma verdade inventada.

Clarice Lispector

Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei–de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.

Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego

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Porto | 2008

Não há uma fatalidade exterior. Mas existe uma fatalidade interior: há sempre um minuto em que nos descobrimos vulneráveis; então, os erros atraem-nos como uma vertigem.
Saint-Exupery