Arquivo: 2008

Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me doo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou.

Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou triste ali fora, na rua juncada de caixotes.

Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego

20 anos

Tínhamos o movimento da terra
e eu compreendia as coisas
como se absorve a luz com os olhos.
Existiam as tuas mãos.

Ana Marques Gastão | Terra sem Mãe

(é demasiado tempo. é tarde. nada me salva da tua ausência.)

Estar lá
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília

Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.

jean-luc pouliquen

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Helena Almeida | Sedução

não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca.

vasco gato

é sempre a mesma imagem;
a tua, saindo nua dos rios do Outono,
o corpo envolto em vapor, coberto de chuva,
gotas azuis e cinzentas desprendem-se de ti,
quando falas
folhas caem e desintegram-se.

é sempre a imagem dos teus seios,
cheio da violência de plantas marinhas
que vibram quando tocadas; peixes
acasalam por debaixo de ti; o teu corpo azul, a tua
sombra seguindo-o,
ambos como espectros vistos de esplanadas distantes
por um público assustado.

a mesma imagem,
mas agora um lago cercado por fetos,
e, meio visíveis por entre a neblina,
mil amantes seguindo-te nus
sem deixar rasto nas esquinas da madrugada.

brian patten | leituras poemas do inglês

E sabes, no que mais tenho pensado é nisso,
no significado das rotas,
no que elas têm a ver com tudo isto que te conto,
com o que nos conduz na vida e não sabemos.
Há um mistério nisso. Tu também sabes.
É o maior mistério e não podemos persegui-lo.
Como se nos afastássemos e só pudéssemos esperar
e fosse mesmo isso o que está certo.

Rui Coias

Eles amputaram
As tuas coxas das minhas ancas.
Tanto quanto sei
São todos cirurgiões. Todos eles.

Eles desmantelaram-nos
Um ao outro
Tanto quanto sei
São todos engenheiros. Todos eles.

Que pena. Éramos uma invenção
Tão boa e tão amável.
Um aeroplano feito de um homem e de uma mulher.
Com asas e tudo.
Pairávamos ligeiramente por cima da terra.

Até voávamos um pouco.

Yehuda Amichai

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Flickr

Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.

Constantino Cavafy

Não há tempo
há horas
Não há um relógio

hábitos que
me habitam

O poema dói
o ponteiro corta
a hora que queima
a morte simula

respira
para não me distrair

fernando lemos | antologia da poesia surrealista portuguesa

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

(…)

vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

al berto