Arquivo: Outubro 2006

Mortes Encenadas

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Tenho sete anos. Levanto-me e vou até à cozinha. Não posso fazer barulho porque estão todos a dormir. Abro a gaveta. Escolho a maior faca que encontro. Já vi isto acontecer num filme.

Ontem festejei o meu décimo aniversário. Ofereceram-me uma boneca igual a um bebé. Amarrei-lhe uma corda ao pescoço e fechei-lhe os olhos. Agora estou muito feliz.

Escrevo o nome de dezenas de medicamentos numa folha. Calculo o tempo aproximado que levarão a fazer efeito. Coloco os frascos por ordem e engulo os comprimidos, assim, primeiro um de cada vez, depois muitos, sempre mais, até quase me engasgar.

Tenho vinte e cinco anos. Anunciam a morte da escritora. A cabeça dentro do forno. Saio do meu quarto. Pego em fósforos.

Vou ao cinema o mais que posso. As imagens ajudam-me. Fico fascinada com a facilidade com que o fazem. Que raiva.

Tenho trinta e dois anos. Passo horas à secretária a imaginar como o farei. O corpo estremece-me de prazer. Só o excesso me convém.

Visto o meu melhor vestido. Saio para a rua. Estou parada no semáforo. Eles passam tão depressa. Vejo um vermelho. Condiz exactamente comigo. Dou dois passos em frente. Tenho quarenta anos.

1996

(como é que passaram 10 anos?)

As ruas são ruas para mim.

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(foto de Jorge Tutor)

Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no aprodrecimento há fermentação.

Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me destrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.

Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido – o som súbito do electrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade vida.

Há muito tempo que não sou eu.

Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego

É exactamente isto.

Releio passagens do Livro do Desassossego e demoro-me por páginas que, aos 18 anos, não poderia compreender.

Nessa altura, todas as palavras eram minhas. Não conhecia ainda a falta da poesia, a claustrofobia que me causa, este existir fora de mim.

Se queres escrever, por que não queres escrever?

Quase metade dos espanhóis é favorável a uma união entre Portugal e Espanha

Diz o Público de hoje:

“Uma sondagem publicada ontem pela revista espanhola Tiempo revela que 45,6 por cento dos espanhóis são favoráveis à fusão. Destes, a maioria (43,4 por cento) defende que o novo país deve ter um velho nome – Espanha -, ao passo que 39,4 por cento chamar-lhe-iam Ibéria; e a esmagadora maioria (80 por cento) defende que a capital deve manter-se em Madrid, contra apenas 3,3 por cento que favorecem Lisboa.

Cerca de metade dos inquiridos defende a manutenção do actual regime monárquico espanhol contra 30,2 por cento favorável a uma República.”

http://www.publico.clix.pt/shownews.asp?id=1273741&idCanal=90

Confesso que me diverti imenso a ler os comentários dos leitores, alguns favoráveis, outros indignadíssimos.

“Eu também sou favorável à integração ibérica com uma condição: durante 60 anos os portugueses ficarem impedidos de exercer qualquer cargo governativo.”, escreve um leitor. :D

Nunca fui nacionalista. Gosto de Portugal. Sou apaixonada por Lisboa. Mas o sentimento exacerbado de pátria que vejo em algumas pessoas não é algo que creio que esteja em mim. Ter um governo espanhol, português ou misto é-me indiferente. Aliás, ainda ontem num jantar dizia que, se pudesse, mandava vir um governo estrangeiro, mesmo que temporariamente, para Portugal. Quando olhamos muito para uma mesma imagem, deixamos de a ver. Desfoca-se. Pois parece-me que estes sucessivos governos já estão a olhar para Portugal há tanto tempo que deixaram de o ver.

Não toquem, porém, na língua portuguesa.

E lembro-me de Pessoa – “Minha pátria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.”

a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica

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Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio…” E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.

(…)

E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego

Words fail me

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“Words, English words, are full of echoes, memories, associations. They’ve been out and about, on people’s lips, in their houses, in the streets, in the fields, for so many centuris. And that is one of the chief difficulties in writing today. They’re stored with other meanings, with other memories, and they’ve contracted so many famous marriages in the past. … In the old days of course, when English was a new language, writers could invent new words and use them. Nowadays, it’s easy enough to invent new words, they spring to the lips whenever we see a new sight or feel a new sensation, but we cannot use them because the English language is old. … In order to use new words properly, you have to invent a new language….”

Entrevista de Virginia Woolf à BBC a 29 de Abril de 1937 – quatro anos antes da sua morte.

São mais de 7 minutos em que a sua voz nos acompanha.

No site da BBC.

Diário

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“Retirei o meu diário do seu último esconderijo debaixo do meu toucador e atirei-o para cima da cama. E tive a sensação de que é desta maneira que um fumador de ópio prepara o seu cachimbo.

Escrever o meu diário é um vício, uma doença.”

Anaïs Nin

Henry & June

Tirana

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Tirana

esconde-te no campo de trigo
tens a sombra de todas árvores

liga desliga o telefone
até conseguires ouvir

a tua bicicleta de criança desapareceu
e ninguém sabe

vinte e três gatos cinzentos
estão na cave da tua casa

(2001)

encontro esta fotografia e demoro-me nela. faltam-me as palavras. falho-me.

fotografaram-me por dentro.

marcar os números errados no telefone e nunca conseguir despedir-me de ti. abrir os braços para quebrar todos os ossos – deixar de abraçar esta cidade. que seja ela a dar-se. desta vez.

Tu me tues. Tu me fais du bien.

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Hiroshima Mon Amour
Marguerite Duras

Je te rencontre.
Je me souviens de toi.
Qui est tu ?
Tu me tues.
Tu me fais du bien.
Comment me serais je doutée que cette ville était faite à la taille de l´amour ?
Comment me serais je doutée que tu étais fait à la taille de mon corps même ?
Tu me plais. Quel événement. Tu me plais.
Quelle lenteur tout à coup.
Quelle douceur.
Tu ne peux pas savoir.
Tu me tues.
Tu me fais du bien.
Tu me tues.
Tu me fais du bien.
J´ai le temps.
Je t´en prie.
Dévore-moi.
Déforme-moi jusqu´a la laideur.
Pourquoi pas toi ?
Pourquoi pas toi dans cette ville et dans cette nuit pareille aux autres au point de s´y méprendre ?
Je t´en prie…

(…)

Je te rencontre.
Je me souviens de toi.
Cette ville était faite à la taille de l´amour.
Tu étais fait à la taille de mon corps même.
Qui est tu ?
Tu me tues.
J´avais faim. Faim d´infidélités, d´adultères, de mensonges et de mourir.
Depuis toujours.
Je me doutais bien qu´un jour tu me tomberais dessus.
Je t´attendais dans une impatience sans borne, calme.
Dévore-moi. Déforme-moi à ton image afinqu´aucun autre, après toi, ne comprenne plus du tout le pourquoi de tant de désir.
Nous allons rester seuls, mon amour.
La nuit ne va pas finir.
Le jour ne se levera plus sur personne.
Jamais. Jamais plus. Enfin
Tu me tues.
Tu me fais du bien.
Nous pleurerons le jour défunt avec conscience et bonne volonté.
Nous aurons plus rien d´autre à faire que, plus rien que pleurer le jour défunt.
Du temps passera. Du temps seulement.
Et du temps va venir.
Du temps viendra. Où nous ne saurons plus nommer ce qui nous unira. Le nom ne s´en effacera peu à peu de notre mémoire.
Puis, il disparaîtra tout à fait.

i think i made you up inside my head

Mad Girl’s Love Song
Sylvia Plath

I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(I think I made you up inside my head.)

The stars go waltzing out in blue and red,
And arbitrary blackness gallops in:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I dreamed that you bewitched me into bed
And sung me moon-struck, kissed me quite insane.
(I think I made you up inside my head.)

God topples from the sky, hell’s fires fade:
Exit seraphim and Satan’s men:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I fancied you’d return the way you said,
But I grow old and I forget your name.
(I think I made you up inside my head.)

I should have loved a thunderbird instead;
At least when spring comes they roar back again.
I shut my eyes and all the world drops dead.
(I think I made you up inside my head.)