(foto de Jorge Tutor)
Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no aprodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me destrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido – o som súbito do electrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade vida.
Há muito tempo que não sou eu.
Fernando Pessoa [Bernardo Soares]
Livro do Desassossego
É exactamente isto.
Releio passagens do Livro do Desassossego e demoro-me por páginas que, aos 18 anos, não poderia compreender.
Nessa altura, todas as palavras eram minhas. Não conhecia ainda a falta da poesia, a claustrofobia que me causa, este existir fora de mim.
Se queres escrever, por que não queres escrever?