sobre lisboa anoitece e caem os teus olhos,
pousados sobre o tejo.
haverá tempo, dirás, para amar ainda.
e cidades para descobrir e inventar-lhes um nome.
parto hoje.
no comboio das 23:10h.
sobre lisboa anoitece e caem os teus olhos,
pousados sobre o tejo.
haverá tempo, dirás, para amar ainda.
e cidades para descobrir e inventar-lhes um nome.
parto hoje.
no comboio das 23:10h.
há um pressentimento de sono sem fim
refugias-te num quarto de pensão e dormitas
o dia todo – para que lisboa te esqueça.
al berto | horto de incêndio
deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.
mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.
pois bem, mário – o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.
a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e a alma esburacada por uma agonia do tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
al berto | horto de incêndio
A melancolia
vive no teu lugar.
Mãe, salva-me
de teus olhos mortos.
Ana Marques Gastão | Terra sem Mãe
Bergman | Mónica e o Desejo
Ela pára, olha para ele, diz-lhe que durante as primeiras horas do encontro dos dois ela soube que tinha começado a amá-lo, como se sabe que se começou a morrer.
Diz: depois, no fim da noite, já era demasiado tarde para eu recusar. Foi sempre demasiado tarde para deixar de o amar.
Ela diz que é como se eles estivessem os dois presos dentro de um livro e que com o fim do livro vão ser devolvidos à diluição da cidade, novamente separados.
Marguerite Duras | Les Yeux Bleus, Cheveux Noir
uma cidade amanhece junto ao cais
sussurra-se um nome muito ao longe
nas vozes de amantes desencontrados.
a terra muda de perfume com
o cheiro do teu sexo nas minhas mãos,
num beco de gatos de olhos amarelos.
quando as janelas se fecharem ficarás ao descoberto,
uma nudez pintada em telas de rua.
lisboa é o nome que pronuncio todas as manhãs.
Junho, 2000
Rebecca Veit
Quero viver o que me dizes, por exemplo
a cor precisa das cortinas,
a madeira que torna a água dura,
amanhecer nos campos de inverno.
Sou a vítima, o resultado
de uma maneira de inclinar os ombros,
quero dizer a sombra
do teu silêncio,
acredito, sem razão que se veja, na definição
das ilhas, o número e o mapa, as gemas tropicais,
venho encontrar-te para uma traição.
António Franco Alexandre
Eu desprezo as proporções, as medidas, o ritmo do mundo vulgar. Recuso-me a viver num mundo vulgar como uma mulher vulgar.
Quero êxtase.
Sou neurótica – no sentido em que vivo no meu mundo.
Não me adaptarei ao mundo. Estou adaptada a mim.
Anaïs Nin
Alguns há que não vivem a vida presente, mas se preparam com muito esforço, como se tivessem uma outra vida para viver que não a presente: e entretanto, o tempo negligenciado vai-se.
Não se pode voltar a jogar a vida como um dado que tornamos a lançar.
Estobeu III, 16, 30
claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
claro que depois passou por perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disso.
hans warren | uma migalha na saia do universo