nao disseste que me amavas. se calhar se o dissesses acreditava. 1 de Janeiro
a janela era uma vertigem, uma vontade quase impossível de resistir. mas estou aqui. continuei. respiro ainda. e ao certo de que me vale tudo isto? 2 de Janeiro
pensar noutra mulher. várias vezes, repetidamente ao longo do dia. é libertador. 11 de Janeiro
repito em voz alta. já não a amo. não? 14 de Janeiro
acordei com um sentimento profundo de solidão. ninguém. preciso que me abracem agora. ninguém. 15 de Janeiro
quero que me amem no limite febril. 17 de Janeiro
é inverno em Lisboa. não há uma única folha nas árvores e o sol é frio. mas a luz desta cidade. 19 de Janeiro
devia o amor ser em tudo a partilha do eu mais puro. não é. misturamo-nos noutro corpo. é a perda da solidão. onde ficamos nós? como permanecer inteiro quando nos tiram a solidão? 26 de Janeiro
os domingos sempre carregaram esta solidão, chorei mais ao acordar a domingos que a qualquer outro dia. 29 de Janeiro
este amor foi um engano. uma mentira que ela me contou. 31 de Janeiro
é domingo e o silêncio estende-se pela casa.
é noite lá fora e o inverno chega aos ossos.
há muito que não te escrevo. dizer-te que existes ainda nos corredores, nos espelhos.
começo a esquecer-me da tua voz. oiço-te dentro de mim mas não consigo reproduzir a tua voz. é tão difícil guardar a memória de uma voz. 5 de Fevereiro
é lentíssima esta morte. 7 de Fevereiro
escrever contra a loucura.
que obsessão é esta? 19 de Fevereiro
e se ela olhar para mim e já não me quiser? e se me quiser ainda? e se isto não tem fim? e se o fim for hoje? e se o fim foi já há muito tempo e não demos por ele? 20 de Fevereiro
é preciso pensar. é urgente parar, não me deixar absorver pela vertigem. 1 de Março
o corpo projectado. lisboa em ruínas. tu sobre a cama. eu sobre ti.
o chão arde.
continuamos. 2 de Março
olhar para ela. saber que é ela. não a amar. amá-la ainda. 14 de Março
na casa antiga.
respira-se o pó. as memórias atacam. tudo tão sujo. 31 de Maio
os planos morreram. o futuro com ela é um projecto passado. tudo será um engano. de olhos abertos. 31 de Maio
bloquear o pensamento. bloquear a dor.
não acreditar. com muita força não acreditar.
continuar em frente. 11 de Junho
espalha-se a loucura à minha volta. é uma luta contra a escuridão, não cair, continuar. 22 de Junho
que desapareçam todos de uma vez e depois levantar-me-ei para caminhar em lisboa em ruínas.
quero o total silêncio da cidade. 28 de Junho
trouxe-me flores pelo meu aniversário. tremia muito. 3 de Julho
este descontrolo do corpo. a sexualidade explode. 11 de Julho
rebentar o corpo. abrir os pulsos. acabar comigo. 27 de Julho
no limite. a tristeza. vomitar ao acordar. 27 de Agosto
vou perdendo a memória dos dias em que a felicidade era uma verdade. 27 de Agosto
“A” morreu. O meu melhor amigo morreu.
É preciso escrever. É preciso dizê-lo. Ele. Tu. O velório. A fotografia à porta da capela. Data de nascimento. Data de morte. O corpo. O teu corpo. As mãos pousadas sobre o peito. O rosto coberto com um lenço branco. O padre a apregoar a uma vida sem pecados – “Que absurdo!”, dirias tu entre risos. Se ali estivesses.
Nós que ficámos cá.
O corpo. O teu corpo.
O caixão a ser fechado. Nós que ficámos cá. O carro funerário. Cinzas.
Nunca mais. Nunca mais.
E agora, Rogério?
Que faço com esta ausência? 10 de Setembro
é preciso regressar à poesia. escrever ininterruptamente. continuar. dizer que ficámos aqui. falar desta cidade quase deserta, dos teus dedos longos, dos olhos verdes dela. 19 de Setembro
a tua morte dói-me.
esta ausência que será para sempre. a tua voz que desaparecerá da memória. 23 de Setembro
chorar em convulsão até rebentar o meu corpo. 24 de Setembro
a sala de espera do psiquiatra. eu e eles.
a minha mãe de olhar parado, a ruga muito vincada entre as sobrancelhas, os ombros caídos e um grito dentro de mim “onde estás, mãe?”.
há uma dor no fundo da garganta.
pegar num carro e espatifar-me contra uma parede.
“e você tem andando bem?”, olho para eles ali sentados. “sim, sim”, respondo ao psiquiatra. “é uma pessoa bem disposta não é?”, “sou sou”.
pegar num carro e espatifar-me contra uma parede. 27 de Setembro
e faltas-me tu para um poema. e falta-me saber que o dia não foi perdido porque houve um novo poema. 27 de Setembro
a passagem do tempo.
tu morres e passam trinta dias.
tu morres e o tempo passa.
continuo aqui. o tempo passa. 28 de Setembro
saber que já não existes. ter-te tido tão vivo e agora não existes. 30 de Setembro
o absurdo de tudo continuar a existir mesmo quando já cá não estás. 11 de Outubro
por vezes penso nela como alguém que morreu.
outras a raiva absorve-me. nesses momentos está muito viva, viva pelas ruas de Lisboa. 11 de Outubro
dir-me-ias escreve, escreve. dir-me-ias aproveita a minha morte e escreve.
setembro passou sem ti.
é inverno dentro de mim. 13 de Outubro
chove violentamente dentro de mim.
tudo é perdido.
continuar, continuar.
vida, vida, vida e depois vida já não quer dizer nada. 13 de Outubro
como uma faca que rasga por dentro, a saudade.
escrever-lhe. dizer que aceito a loucura por mais um instante.
esquecer-me de tudo e permitir este amor.
olhos. mãos. lábios. olhos. mãos. lábios. 23 de Outubro
a tua morte é insuportável. preciso que voltes a existir. com muita força preciso que voltes a existir. 31 de Outubro
viajo para outros lugares, muito longe de mim. e não sei se me procuro ou se me fujo. 4 de Novembro
as saudades avassaladoras. do tempo a salvo da loucura. quando é que houve tempo a salvo da loucura? talvez tenha saudades da loucura. é isso. sim. 4 de Novembro
o corpo no caixão aberto. o corpo no caixão aberto. o corpo no caixão aberto.
que inferno, a memória. 5 de Novembro
estou no limite. quero que todos se fodam. esqueçam-me. não existo. nunca existi nesse mundo exterior.
sono, sono, sono.
porque acreditei eu no amor?
e a vida? porque acreditei que valia a pena? 6 de Novembro
a história foi contada. o livro foi fechado. nenhuma palavra pode ser acrescentada agora. 6 de Novembro
há dois dias que escrevo incessantemente. poderei não existir dentro de algumas horas, há um pressentimento de fim e de urgência.
todos os fantasmas andam à solta nesta cidade. 6 de Novembro
os diários de al berto atiram-me para o fundo de mim. quero escrever até que todo o corpo se contorça e me doa. 7 de Novembro
rogério. escrevo ininterruptamente e sinto-te aqui. estremeço e oiço-te falar por muito tempo. 7 de Novembro
quais as palavras se ela reaparecer? qual o silêncio? 7 de Novembro
que sono é este?
será assim quando a morte se aproxima? preciso de fechar os olhos por um instante.
tudo o que está vivo agride-me.
um instante para cair num sono profundo. 8 de Novembro
de onde vem esta torrente de palavras? a arritmia do sangue nas veias. 8 de Novembro
a escrita libertou-se dos outros, estou novamente no centro de mim mesma. já não preciso de ninguém para escrever. tenho a memória e o inferno desta lucidez. 8 de Novembro
nada direi para te trazer de volta. saí do centro da tempestade e estou cansada. 13 de Novembro
a cada passo que dou cai um homem morto a meus pés. o corpo torcido, pernas e braços como os de uma marioneta. 20 de Novembro
lamento muito, Maria. esta é a frase que se repete nos últimos meses. vem de amigos, de conhecidos, de desconhecidos, de médicos, de familiares. vem de todo o lado. 21 de Novembro
uma noite inteira com ela, como uma longa linha de coca. 22 de Novembro
levanto-me e vou até ao tejo. a solidão espalhada pelas ruas desta cidade. tenho animais mortos e assaltantes de casas na cabeça. 23 de Novembro
vê-la é como aceitar só mais uma dor numa vida já devastada. 26 de Novembro
afinal é possível entrar no táxi e perguntar quanto custa um desastre. quatro euros e quarenta e estou à porta de casa dela. 26 de Novembro
“A” morreu há três meses. todos os dias são o dia do velório. 29 de Novembro
os dias cinzentos. sempre. sempre. 6 de Dezembro
sinto o meu corpo a tentar reagir. um básico instinto de sobrevivência. é preciso ficar melhor, acumular energia, pôr um pé à frente do outro. 7 de Dezembro
assim passam os dias sem ti, lentíssimos, de olhos virados para a morte. 12 Dezembro
ainda imagino muitas vezes o telefone a tocar, atender e ouvir-te do outro lado “sim? sou eu”. 13 Dezembro
tem chovido muito em lisboa. abre-se as janelas e não há luz que entre. a solidão torna-se mais pesada quando chove. caminho pelas ruas da baixa, olho o castelo lá em cima e penso que já não estás cá. 17 de Dezembro
dizem que hoje é o dia do fim do mundo. o que eles não sabem é que o mundo já acabou em Agosto. 21 de Dezembro
os sonhos misturam-se com a realidade e há alturas em que me sinto dentro de uma alucinação. 27 de Dezembro
acabou. o ano da tua morte acabou. todos os anos depois deste serão ainda o ano da tua morte. 31 de Dezembro