c' 21 Julho, 2010 at 6:03 pm O ANDAIME O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado! Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anônimo e frio, A vida vivida em vão. A ‘sp’rança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha ‘s’prança, Rola mais que o meu desejo. Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam – verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer. Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou. Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida! Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido. Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças - Mortas, porque hão de morrer. Sou já o morto futuro. Só um sonho me liga a mim - O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser – muro Do meu deserto jardim. Ondas passadas, levai-me Para o alvido do mar! Ao que não serei legai-me, Que cerquei com um andaime A casa por fabricar. Fernando Pessoa Reply ↓
sem palavras… meu deus, que maravilha…
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O ANDAIME
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam – verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser – muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
Fernando Pessoa