A criança num saco de água quente.
Pouso-a na cama e embrulho-a em lençóis. Quente estarás.
Volto de hora em hora para medir a temperatura. Cansa-me os teus olhos sempre abertos, o balbuciar repetido nos meus ouvidos. Já percebi o que queres e desta vez que seja minha a vontade, afinal que podes tu?
Observo as alterações na tua pele, como se uma vindima inteira vivesse debaixo dela, secam-se os olhos e pareces de porcelana.
Está a anoitecer. É preciso voltar a ferver a água.
Que insólito ritual é este, simultaneamente terno e sinistro, tão humano (como os gestos de uma mãe que cuida de um filho doente) ou tão desumano (como os gestos de alguém que mata a sua própria semente) e em que ecoa uma vibração religiosa (“que seja minha a vontade”) ou satânica (“quente estarás”)? Há uma espécie de horror embuçado em silêncio que atravessa todo o texto, paralelo ao acto da voz que diz: ”embrulho-a em lençóis”. É no descrever/narrar natural destes gestos aparentemente inofensivos (nunca são enfatuados) que o horror se torna intenso e quase sufocante.
Os períodos breves só me permitem entrever parte da acção. E, no entanto, mesmo parcelar, a acção é expressa com palavras de uma arrepiante integridade e precisão. É entre os pontos finais, que funcionam como hiatos, que a minha imaginação é tomada por imagens de uma violência terrível que mal me atrevo a pronunciar: o enigma do que se passa exactamente no quarto e na cozinha do teu texto e as razões de quem pratica esse/s acto/s. O teu texto parece ser também uma casa densa e fechada. Eu ia dizer assombrada, mas recuei porque há nele uma dose tão grande de realismo que não aceita a palavra “assombrada”. Se há fantasmagoria é porque esse realismo, sendo levado às últimas consequências, quebra a estreiteza das suas fronteiras e caminha numa zona de sonambulismo surrealista ou surrealizante. Nos gestos do assassino/a sugere-se um maravilhoso desejo de reanimação da vítima, eu diria mesmo de tentativa de ressurreição… Amar e matar estão assim muito próximos. A força deste poema narrativo é gerada por esta ambiguidade, por esta margem indefinível em que o tempo vai deslizando, contado regularmente (“Volto de hora em hora”) ou estranhamente decorrendo, quase sem se dar por isso, como a surpresa da expressão “Está a anoitecer” parece indicar. Em quanto tempo se passa, passou ou se passará ainda esta acção, apenas esboçada? Passa-se num dia ou numa eternidade? Não o sabemos exactamente. É um espaço/tempo de demência. E não é a mais pavorosa demência a que está cheia de lucidez?
Que força tem o teu texto, Maria João, que força! Parabéns.