aos nove anos já conhecia a morte. não havia céu nem lugar melhor. com a morte ia-se para debaixo da terra, ficava-se sozinho para sempre e chovia-nos em cima enquanto o corpo apodrecia. sabia que ninguém voltava da morte. que tinha de guardar na memória tudo o que conseguisse porque o tempo apaga os rostos e as vozes. sabia do inferno da solidão, que a loucura ameaça o olhar, as intermináveis horas de espera por quem jamais regressaria.a idade para ser criança acabou cedo. os campos de trigo onde outrora brincava às escondidas eram agora um refúgio para a dor. e os campos de trigo já não existiam senão na minha cabeça.

sabia que janeiro vinha inevitavelmente depois de dezembro, que as marés enchem sempre depois de vazar.

aos dez anos vi tanques e homens armados a invadir a minha cidade. soube que se fugirmos de um lugar levamos o lugar dentro de nós e que o silêncio das armas pode ainda provocar explosões por dentro do corpo. chegaram as noites carregadas de pesadelos, dormir em estado de alerta ou não dormir de todo. o baloiço enferrujou-se soltando-se da árvore quando as crianças desapareceram e já não havia sementes de girassol para encher os bolsos das batas pretas.

há espaços de dor que não conseguimos atravessar porque é na verdade a dor que nos carrega para a frente. mais do que qualquer outra coisa, é a dor que nos molda a identidade. o que nos aproxima mais de nós próprios senão o sofrimento?

todos os desastres que acontecem, acontecem para sempre.

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