11 janeiro 1948 – 13 junho 1997
Ah! Como tenho sede doutras vidas, como desejaria o silêncio magnífico das profundidades do mar. Um dia deixarei de escrever, de ler, de dormir, de comer, de me apaixonar, deixarei pura e simplesmente de viver, no entanto estarei irremediavelmente vivo. Irremediavelmente acordado para as catástrofes do fim do século. Estarei acordado dentro do meu corpo envelhecido, atento às doenças da alma. Visões, alucinações palpáveis, miragens, orlas de oceanos e desertos. Lugares onde o viço da vida desponta devagar, esparso ainda. Aqui sobrevivi, na orla da vida. Como poderei adivinhar o futuro, ou ter esperança, se a vida na orla do deserto se reduz a pequenos nichos, escassa chuva, raros rostos, memórias que se apagam de hora a hora e que eu não registo nem guardo, porque tenho relutância em lembrar-me seja do que for. Só quero ter na memória o que está por acontecer. Que forma terão os meus pensamentos depois da minha morte? Conseguirei continuar a escrever? De que maneira?
Al Berto | Diários
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visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
Al Berto, in ‘Salsugem’