fragmentos do diário XXVI – breves de 2017

“o novo ano começa com o presságio de um amor”. esta era a frase a escrever, há dias atrás. não a escrevi porque a certeza da dor é tão absoluta e aterroriza-me de tal forma que mais vale não deixar mais um registo de uma desilusão escrito. 6 Janeiro

Sinto-me pequena e frágil perante as suas demonstrações de ternura. 9 Janeiro

O que me espera nas próximas horas? Que início de amor? Que amor?
A felicidade que sinto só é equiparada ao medo que sinto.
Preciso de quebrar o ciclo. Preciso de um amor passível de ser vivido. 11 Janeiro

Ocupo o lugar 14D do avião e reparo que não existe lugar 13. Portanto, à prova de azares. 11 Janeiro

Um mergulho em maré alta, chegar ao fundo, abrir os olhos e as águas serem transparentes, como os dias mais claros. 12 Janeiro

Pesadelos todas as noites. Acordo com imagens terríveis que me acompanham nos dias que se seguem. 23 Janeiro

O peso dos anos sobre o corpo. Tudo me dói e me esmaga e desejo voltar a dormir num profundo sono despovoado de imagens. 3 Fevereiro

Sonho com os olhos verdes dela – uma tempestade. 17 Fevereiro

E hoje é domingo. Destes domingos que chegam aos ossos. 19 Março

Passaram quase 30 anos. Somos adultos agora. Muito mais adultos do que julgávamos ser possível quando brincávamos às escondidas pela casa dela.
E talvez só eu guarde estas memórias. Como uma dádiva ou maldição. Certamente estarão todos felizes por se encontrarem enquanto que eu trago todos estes fantasmas, permito que se sentem à mesa connosco. 24 Março

Silêncio. Sempre tanto silêncio. 25 Março

Pego no telemóvel para começar a escrever e percebo as saudades que tenho de um papel e uma caneta. 2 Maio

Farias anos hoje. Dir-me-ias, “estou acabado”. Eu chamar-te-ia de parvo, dir-te-ia que ainda bem que cá estás, que estás perto de mim, que irias morrer muito tarde, de velhice. Tu inclinarias a cabeça, olhando para mim e sorrindo, sabendo que eu te percebo mas feliz pela minha crença quase infantil na tua imortalidade. 2 Maio

Caminhar pela cidade, respirar a cidade. É ainda isto que me devolve.
Depois de uma hora nestas ruas, a arritmia acalmou. 22 Maio

Tem acontecido isto, relações em que as pessoas não se dão mas dizem amar-me como nunca amaram. De que serve o amor pelo amor? Diria mesmo, o amor desprovido de amor. 1 Junho

Que bem me serviria uma vida sem trabalho!
 Poder passar as tardes num café a ler, a escrever. 2 Junho

Não me tinha apercebido quão triste estava até reparar que o sol há muito já se tinha posto e que estava sentada na sala às escuras. 19 Junho

Ela diz-me que comprou a passagem. que chega dia 18. E eu sinto que me deram um nó por dentro, que deixei de conseguir respirar fundo. É como aquelas velas de aniversário que depois de soprarmos se voltam a acender. Como um vírus que surge cada vez que o sistema imunitário está comprometido e nos ataca por dentro. 25 Junho

Tão farta de pessoas. Afastam-se quando me aproximo, aproximam-se quando me afasto. Alguém sabe o que quer? 28 Junho

Ceder ao que sinto por ela. Seria um vendaval. 1 Julho

Aniversário. Há mais mortos que vivos ao redor desta mesa. Que dia horrível, horrível, horrível. Porque raio se festeja um dia destes? 3 Julho

Leio a poesia de Bukowski – Love is a Dog from Hell – e é esta poesia que melhor me serve. Não há palavras caras, romantismos desnecessários, há sexo e solidão, e solidão depois sexo e uma espera de que ninguém fala. 6 Julho

É estranho como nada me completa e ao mesmo tempo a companhia faz-me sentir ainda mais incompleta. 9 Julho

Momento há em que não quero apaixonar-me por ninguém, não quero sair desta zona de conforto que a solidão se tornou. 9 Julho

Vou buscar os diários de al berto. Abro sempre numa página ao calhas e de todas as vezes tenho de suster a respiração. Forma-se um nó na garganta que dói. 11 Julho

Domingos intermináveis. A solidão é cada vez maior. Ninguém aparece e o telefone não toca.
Em três meses fará um ano que não vejo a mãe. A voz dela começa a desaparecer, como sempre desaparecem as vozes dos mortos.
Continuar viva é isto, suportar a dor, estar no absoluto limite da tristeza. 16 Julho

Com ela relembro-me como pode ser perfeita uma relação. Passeamos e conversamos e rimos e eu sinto-me mais inteira. 20 Julho

Que me deem tudo, ou que fiquem longe de mim. 21 Julho

Quando me sento nas esplanadas da avenida e o fado se começa a ouvir, tudo volta a estar bem. Sou de lisboa.
Se ao menos conseguisse passar para a escrita esta luz, como o vento faz estremecer as árvores e provoca as sombras interrompidas pelo sol. 29 Julho

Um desejo que me deixa doente – de algo tão simples como tocá-la na mão. 2 Agosto

Ela empurra-me para a escrita, para os livros, para o cinema. Coloca-me no centro de mim, faz-me sentir coisas como se fosse a primeira vez. e eu caio, sem rede, pelo olhar dela adentro. 2 Agosto

Mas há sempre o dia seguinte. 3 Agosto

E agosto hoje voltou a ser agosto. este mês lentíssimo, em que as ruas cheiram a morte e nenhuma voz virá salvar-me.
Se ao menos Lisboa esvaziasse de repente e eu pudesse nela caminhar. Sem nenhuma voz, sem nenhum rosto.
Que me seja devolvida esta cidade. 10 Agosto

A única forma de atingir a felicidade é o amor. Tudo o resto que queiramos inventar para lá chegar são actos desesperados de dar sentido à vida. 13 Agosto

Espero o metro na estação da avenida. Olho para as pessoas em volta e penso que um dia deixarei de cá estar, todas estas pessoas deixarão de cá estar. Estes carris sobreviver-nos-ão. 14 Agosto

Sozinha na praia. Faz-me bem este tempo de solidão, já que a solidão é tão profunda ao menos que as vozes se calem também. 18 Agosto

Costumava adorar regressar a Lisboa depois das férias, a beleza desta cidade era ainda mais evidente depois de uma ausência. Agora, olho para a avenida, para as sombras das árvores das quais ainda há uns dias falava e é como se a beleza não entrasse em mim. Estou fechada do lado de fora da beleza. 24 Agosto

Fico a imaginar que ela vai regressar de viagem e tudo voltará a ser como era. Mas ela regressará à cidade, não a mim. 25 Agosto

Acordavas hoje pela última vez. Haverá algum presságio do fim? Terás tu sentido que era a última manhã? Tudo tão breve, a vida passa a correr. De repente temos quarenta anos, de repente deixamos de cá estar. Que sentido faz tudo isto? Que sentido faz procurar um sentido? 28 Agosto

Ela é o início e o fim do meu desejo. 31 Agosto

Não salvei ninguém. Toda a vida a tentar. Nada, ninguém. Não salvei ninguém.
O vazio que resta é dantesco. Como se o corpo estivesse esburacado por tiros. 7 Setembro

Há muito tempo que tenho noção disto em mim, deste pavor à ternura, deste medo do amor desprovido de violência, do amor simples, sem fugas. E entristece-me e pergunto-me se voltarei a amar tranquilamente. 21 Setembro

Talvez o tempo do desejo tenha acabado. Talvez o corpo se tenha gasto por excesso de uso. 27 Setembro

sábados que expõem a solidão
sábados em que o sol fica fechado fora de casa
sábados que são domingos
estes dias intermináveis. 7 Outubro

Há uma sensação de orfandade neste vazio. Perdi o que me ligava à terra, as raízes desapareceram. 16 Outubro

Trabalho até de madrugada, trabalho aos fins-de-semana, aos feriados. Não deixo que a solidão me apanhe. Escrevo pouco para não criar espaços onde o pensamento me leve para lugares escuros. Porque, a bem ver, tirando o trabalho toda a vida é um espaço escuro. 12 Novembro

Esta solidão leva-me à loucura. 23 Novembro

Seria melhor nada escrever durante este interminável dezembro. 19 Dezembro

Medo de escrever sobre a noite com ela. Medo que tudo desapareça no momento em que escrever. 23 Dezembro

E assim chega a noite de natal, este natal feito de ausências.
Temo que se começasse a chorar não houvesse como parar. 24 Dezembro

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